25.10.05

FIBDA 05 - ENTREVISTA COM ALEKSANDAR ZOGRAF

No primeiro Sábado do FIBDA, o Beco das Imagens conversou com Aleksandar Zograf sobre bd e sonhos, mas principalmente sobre Regards From Serbia. As histórias foram sendo enviadas para amigos, quase todos autores de bd, e acabaram por percorrer enormes correntes via internet, chegando mesmo a ser publicadas em diferentes locais durante a guerra nos Balcãs. Enquanto isso, Zograf não tinha noção do alcance que as suas histórias estavam a ter e continuava a enviá-las, como cartas, para os amigos. No jornal Il Manifesto, por exemplo, as histórias sem imagem (uma espécie de diário que acompanhou a elaboração da banda desenhada) e as pranchas de Regards From Serbia já estavam a ser publicadas diariamente e Pancevo, localidade sem importância estratégica ou alvos militares, percorria jornais e revistas de todo o mundo enquanto era destruída pelas 'bombas inteligentes' da NATO. De entre as coisas partilháveis, sobraram as histórias e os sonhos a que Zograf dedica toda a atenção possível e uma parte importante do seu trabalho, integrado nos Dream Comics, um movimento sem muitas regras, mas com participantes de muitos sítios.



Em Portugal conhecemos muito pouco do que se faz nos Balcãs em termos de banda desenhada. Podíamos começar por aí...

A produção de bd na ex-Jugoslávia começou no século XIX, com o que podemos chamar de proto-bd, e em meados da década de trinta do século XX houve uma grande 'explosão' quando o diário Politika começou a publicar banda desenhada. Primeiro publicou pranchas directamente importadas dos Estados Unidos da América e depois começou a incluir trabalhos de artistas jugoslavos, alargando o meio e permitindo que os artistas criassem espaços para publicarem as suas histórias em várias outras revistas e jornais. Quando o meio já estava estabelecido, com a banda desenhada a ser considerada um meio artístico relevante, a segunda guerra mundial veio devastar tudo. Muitos autores começaram a publicar no estrangeiro e outros dividiram-se entre ocupantes e resistentes, usando a banda desenhada ao serviço das suas ideias. Ou seja, toda a 'cena' que se desenvolve de modo grandioso na década de trinta, desapareceu na década de quarenta. Depois da guerra, as coisas começaram a voltar ao normal, ainda que lentamente e com o problema de as novas gerações não terem contacto com eventuais pontos de referência. Era como se houvesse um hiato entre a anterior geração e a nova. E depois havia todos os problemas inerentes à passagem de uma guerra...
Ainda assim, não deixa de ser maravilhoso descobrir que uma parte do mundo com tantos conflitos foi conseguindo sobreviver sem nunca deixar de criar e mantendo sempre a banda desenhada como uma linguagem artística activa e com vários autores.

E o Zograf, quando (e porquê) começou a fazer bd?

Desde que me lembro... Para mim sempre foi uma espécie de obsessão e de processo natural. Comecei a publicar em meados da década de oitenta, em várias revistas da então Jugoslávia, e quando a guerra começou, comecei a publicar no estrangeiro, primeiro nos EUA, depois também na Europa.

Nós descobrimos o seu trabalho há dois anos, no Salão Lisboa, com as pranchas de Regards From Serbia (feitas enquanto uma guerra acontecia para lá da janela da sua casa, em Pancevo). Como é que se consegue criar alguma coisa, neste caso histórias em banda desenhada, quando há uma guerra a acontecer mesmo ali?

Mesmo para mim, parece um sonho. É difícil explicar... De repente, encontras-te numa situação muito estranha, muito diferente da normalidade, em que não sabes dizer o que vai acontecer a seguir. Mas de repente tu próprio começas a reagir de forma normal, quotidiana, porque não sabes de que outro modo podes reagir.
Quando estava em casa podia ver os bombardeamentos em todas as direcções, porque Pancevo é num a zona plana, e a sensação que tinha era a de estar a assistir ao bombardeamento constante de um pais inteiro. E era tudo tão estranho que eu não sabia o que podia fazer, até começar a perceber que estava a comportar-me como se tudo aquilo fosse o cenário habitual da minha vida, como se tivesse nascido com as bombas a acontecerem todos os dias e todas as noites.

Como se a guerra fosse normal...
Sim, como se fizesse parte do dia a dia. Hoje, quando falo com algumas pessoas que passaram pela mesma situação, há quem me diga que não tem a certeza se tudo aquilo aconteceu mesmo, como um sonho... Primeiro, quando tudo começa, tu pensas que é o fim e não sabes o que hás-de fazer; mas depois, quando as coisas começam a acontecer todos os dias, começas a querer agir, a querer fazer alguma coisa que saibas e possas fazer num panorama em que não podes agir do modo habitual (as escolas fecham, as fábricas param...). E como a única coisa que eu sabia fazer era escrever e desenhar, foi o que fiz.

Como uma forma de não perder a esperança nem a comunicação com o resto do mundo?
Sim, isso mesmo. E foi também a maneira de encontrar um objectivo diário, um modo de sobreviver num contexto em que ninguém podia prever como acabariam os bombardeamentos, ou quando. Pancevo foi bombardeada todos os dias durante dois meses e meio, sem qualquer espécie de critério nos alvos, e isso criou uma instabilidade brutal... Não saber onde pode cair a próxima bomba é uma sensação que acaba por nos manter num estado difícil de descrever, uma espécie de estado mental alterado. E fazer alguma coisa criativa foi como uma espécie de cura, de objectivo de vida, mas também de intervenção no mundo.

Então podemos considerar Regards From Serbia como uma espécie de manifesto, um modo de assumir uma posição perante o conflito político e militar que se vivia?
Sim, sem dúvida. E foi um processo complexo também a esse nível. Eu fazia parte de um enorme grupo de pessoas que estavam contra Milosevic, mas também contra os bombardeamentos. E ninguém pode realmente concordar com o facto de se bombardearem pessoas! O problema é que quando dizíamos alguma coisa contra as bombas, algumas pessoas interpretavam-no como sendo a favor de Milosevic, e isso era mentira, e deixava-me muitas vezes sem saber o que dizer às pessoas, ou como dizê-lo de maneira a que percebessem a minha opinião. Por isso, Regards From Serbia foi também uma boa maneira de esclarecer a minha posição sobre a guerra e sobre Milosevic.



Falemos de sonhos. Como começou o projecto da Dream Comics?
Bom, começou um pouco como as bombas, sem aviso prévio (risos). Nos anos oitenta eu tive um sonho com uma banda desenhada que, quando acordei, conseguia visualizar e reproduzir tal como estava no sonho. E foi a partir dessa altura que comecei a reflectir sobre a melhor maneira de transformar 'material onírico' em banda desenhada. Depois, nos anos noventa, quando comecei a publicar no estrangeiro, fui ouvindo falar de alguns autores que faziam o mesmo nos seus próprios países, sem que o tivesse combinado previamente. Era como uma rede de pessoas que não sabiam que pertenciam a essa rede... E então começámos a trocar correspondência, ideias, métodos de trabalho. Mas tudo começou de modo acidental, sem organização prévia. E é preciso lembrar que a ideia não foi original; já Winsor McCay desenhava e escrevia a partir do mundo dos sonhos...

Quando se dedica aos Dream Comics, desenha e escreve exactamente aquilo que sonhou ou usa ideias e imagens do sonho como ponto de partida para outra coisa?
Normalmente, tento representar exactamente aquilo que vi e experienciei no sonho. E por isso as histórias são, quase sempre, autobiográficas. Para alem disso, tenho feito algumas experiências a partir do chamado estado de semi-sono, uma espécie de estado hipnagógico em que aquilo que vemos são essencialmente flashes com imagens diversas. O que eu tento fazer é acordar e transpor tudo para um bloco de notas que tenho junto à almofada, de maneira a não me esquecer de nada. Isto requer alguma prática, até começar a funcionar, mas depois é muito compensador.

Acha que o sonho pode ajudar a mudar o mundo, ou alguma coisa no mundo?
Sim, estou absolutamente convencido disso! Os sonhos fazem parte da natureza humana e quando as pessoas estão próximas dessa natureza, não precisam de destruir ou de fazer a guerra. Os sonhos são pedras basilares da nossa existência e do nosso sistema biológico. Um dos problemas da nossa civilização ocidental é o facto de se ter afastado disso, apelando para a razão acima de todas as coisas e usando-a como ponto de partida único para o desenvolvimento (tecnológico, principalmente). Isso faz com que certas áreas da natureza humana sejam frustradas e com que vários medos se espalhem. Se conhecermos os nossos sonhos, podemos conhecer melhor aquilo de que somos feitos e aprender a lidar com as coisas que desconhecemos e que tememos.

Sonhar mais e fazer menos guerras...
Isso!



(Entrevista partilhada com o Canal de Livros)

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