2.10.03

O DILÚVIO E OS ESPIRROS
Choveu a tarde inteira. Mas isso nem seria desagradável se vivessemos numa cidade civilizada, onde as ruas não estivessem atulhadas de carros e onde os transportes públicos, para além de funcionarem, não tivessem de estar horas parados por causa das filas que os carros provocam. E, já agora, onde as pessoas não tivessem de recorrer aos carros por não existirem transportes públicos decentes. Afinal, foi o ovo ou a galinha? E o que é que isso tem a ver com um blog de banda desenhada e ilustração? Aparentemente nada... Mas como passámos a tarde a tentar utilizar os transportes públicos para chegar a vários sítios, e como esses transportes funcionam mal, e como a chuva que caiu foi demasiada... Enfim, isto tudo para dizer que apanhámos uma valente constipação e não estamos em condições de escrever nada de interessante, como se pode constatar. Deixamos como compensação uma bela imagem de Alain Corbel e um texto a propósito, ambos encontrados através de uma busca com a palavrinha mágica: chuva.
Amanhã prometemos voltar em condições. Entretanto, como passámos pela fnac nas andanças da tarde, anunciamos que está à venda um novo livro de Pedro Burgos sobre o qual diremos coisas em breve. Até amanhã.



A chuva assola a cidade como um bom verso ressoa no ouvido do poeta. O poeta está cansado da poesia e a chuva na janela só agrava a sua condição. Não tem fome, o poeta, pois é funcionário público. Tem um desejo secreto que não passa pelo nylon, embora considere erótico o y e tenha uma atracção pelo abysmo.
A ânsia inconfessável do poeta, aquela que o cansa e faz invejar a água, é destruidora. Passa as noites a riscar em folhas os planos. Assim faz companhia à chuva que gasta a cidade como um bom verso. Em passeio, escolhe um monumento e namora-o.
Descobre os seus segredos, entra nos seus abysmos, recolhe as suas águas. No Alto da Eira solicita os projectos do arquitecto respectivo, vasculha noutros arquivos, solicita o parecer do historiador. Tudo com o afã do beijo na boca, da carícia furtiva. E a chuva cai, londrinamente, a intervalos acariando e incomodando todos. À noite, em solidão, risca planos no papel no afã de dar corpo à ânsia inconfessável de poeta cansado, embora sem fome. Como bom funcionário devota preferências à estatuária. Adora por exemplo cavalos pelo que lhe era fácil aprender o local certo na anatomia por exemplo em bronze para colocar o plástico. Depois é esperar pela chuva da hora de ponta e fazer em mil pedaços a estátua. Nem todos os desejos são de nylon.
Ninguém sonha que o poeta sonha com uma chuva de estilhaços de arte pública. Também isso o cansa.


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