30.10.03

ENTREVISTA COM JOSÉ CARLOS FERNANDES
José Carlos Fernandes conversou com o Beco das Imagens durante o Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora. Com enorme simpatia e disponibilidade para falar do seu trabalho e do seu universo criativo, José Carlos Fernandes respondeu às perguntas sobre a obra que tem desenvolvido, reafirmou a vontade de continuar a explorar o universo da Pior Banda do Mundo e falou-nos de outros projectos, que incluem um conjunto de argumentos para histórias curtas que serão desenhadas por Miguel Rocha e Jorge Gonzalez.
Até ao próximo fim-de-semana, pode ver-se a exposição individual do autor no segundo andar da Escola Intercultural.

Esta entrevista foi também publicada no Canal de Livros, aqui.



Vou começar pela pergunta mais ou menos clássica… Como é que começaste a desenhar?

Eu tenho uma história muito pouco característica…Em miúdo tinha algum jeito para o desenho, mas nunca fiz nada por isso, nunca trabalhei sistematicamente, nunca pratiquei. Deixei praticamente de desenhar no momento em que fui para a Faculdade mas ficou sempre um ‘bichinho’ cá dentro. E depois, assim um pouco excepcionalmente decidi que ia começar a desenhar e cerca de dois ou três meses depois surgiu a oportunidade de fazer uma banda desenhada e fiz. E foi muito menos complicado do que eu pensava, ou seja, ficou uma porcaria porque foi a primeira tentativa (risos), mas os problemas que eu julgava que eram os piores, afinal pareceram-me simples de resolver. E depois fui sistematicamente tentando resolver os problemas que tinha e que eram óbvios… E foi assim.

Mas continuaste a trabalhar na área da Engenharia Ambiental?
Ah, sim. A banda desenhada era feita nos tempos livres, nos feriados, nas férias, à noite. E isso praticamente durante dez anos. Só quando recebi a bolsa de criação literária é que resolvi fazer banda desenhada a tempo inteiro.

Sempre publicaste com uma regularidade assinalável. As histórias surgem-te com facilidade?
Sim, nunca tive problemas em criar histórias As únicas vezes em que tive alguma coisa parecida com um bloqueio foi quando achei que o que tinha feito até aí já estava arrumado e que queria subir para o ‘patamar’ acima. Mas como essas coisas não se decidem assim, tive alguns momentos em que fiquei bloqueado. Eu podia fazer o mesmo que já tinha feito antes, mas queria fazer melhor. De resto, nunca tive dificuldade em criar histórias. Aliás, levo muito mais tempo a executá-las em termos de arte final do que a definir a ideia base.

Olhando para a tua obra de um modo transversal parece haver algumas linhas comuns desde os primeiros trabalhos, sendo a mais consistente a dimensão onírica de muitos personagens. Concordas?
Sim. Há coisas que estão algures entre o surreal…mas também o surreal decorre, no fundo, da suspensão, pelo menos parcial, da racionalidade…portanto isso acaba por ir dar um pouco ao onirismo. No limite, toda a ficção é onirismo (tirando aquela que é neo-realista ou hiper realista até ao último detalhe). Mas é verdade que as minhas histórias estão muito vinculadas a coisas materiais. O meu quotidiano é um quotidiano sempre visto através de um espelho deformado. As vezes que tentei trabalhar com a linguagem do cinema não tive bons resultados, porque estou muito pouco à vontade com essa linguagem, que é muito realista. Há pessoas concretas, em lugares concretos, definidos, muito terra a terra. E as minhas bandas desenhadas vivem mais num mundo de ideias, de conceitos, de ambientes, e eu tenho a preocupação de não lhes dar um lugar e um tempo definidos. Percebe-se vagamente que as coisas se podem passar no início do século XX, mas ao mesmo tempo introduzo alguns anacronismos propositadamente para baralhar os dados, para que tudo seja válido, qualquer lugar, qualquer tempo…

E a lógica quase labiríntica da conspiração… Parece que as tuas personagens têm todas uma paranóia qualquer que as faz agir de determinada maneira, quase como se não fossem elas a controlar as suas atitudes. De onde vem essa ideia?
Todas essas obsessões acabam por ser metáforas do nosso próprio comportamento. Por exemplo, no caso da Pior Banda do Mundo, o anacronismo que eu introduzo é um bocado malicioso porque tem como objectivo apanhar as pessoas desprevenidas. As pessoas olham para aquilo e pensam ‘Bom, isto é outro lugar, outro tempo’. Mas a minha intenção é que se perceba que tudo aquilo nos diz respeito a nós, agora. Há paranóias ali que são perfeitamente contemporâneas e por isso o anacronismo de espaço e de tempo é uma forma de apanhar as pessoas desprevenidas. Mas espero que as pessoas vão percebendo, à medida que vão lendo as histórias, que tudo aquilo, todas aquelas paranóias, tem tudo a ver connosco, com os nossos problemas e com a nossa sociedade.

O teu universo é muito povoado por referências literárias e musicais: Jorge Luis Borges, Kafka, o Jazz… Como é que vês a relação da banda desenhada com essas outras artes?
Bom, a música é mais um gosto pessoal, mais ambiência do que propriamente influência directa. A literatura é o quarto ao lado da banda desenhada e aí, sem dúvida, as influências são muitas. Com a música é diferente. Há dias estava a ler a Wislawa Syzmborska, uma poeta polaca de quem eu gosto muito, e li um excerto onde pude perceber uma coisa que eu sinto e que nunca conseguiria exprimir por palavras. A propósito da música, ela explica que a música gera muitas vezes dentro de nós uma tensão que só conseguimos resolver escrevendo ou pintando ou recorrendo a outra expressão artística. E o resultado dessa expressão pode não ter sido directamente criado pela música, mas foi graças à tensão que a música produziu que pode surgir. E essa é a relação do meu trabalho com a música. Digamos que a música não é uma influência directa, mas mais uma presença decorativa ou de ambiente.
No caso da Pior Banda do Mundo, talvez possa arriscar uma metáfora. Há um pianista de jazz que começou a ser conhecido nos anos 40/50, Thelonious Monk, que ficou conhecido por tocar sempre a nota ao lado da nota certa, e sempre uma fracção de segundo antes ou depois do momento considerado certo. E tudo aquilo produz uma música extremamente angulosa e distorcida, mas que não é menos bela por isso. De certa forma é isso que acontece com aquela galeria de personagens da Pior Banda do Mundo. Eles nunca acertaram na nota correcta da vida deles; tocaram-na sempre ao lado… E essa é, de certa forma, a melodia que as minhas personagens tocam.

A série A Pior Banda do Mundo tem sido considerada pela crítica, de modo muito unânime, como uma obra de maturidade. Sentes isso na realidade, ou seja, sentes que chegaste a um outro patamar do teu trabalho? Estás tão satisfeito como a crítica com o teu trabalho?
Sim, se não tivesse ficado satisfeito não persistiria na continuação do trabalho com a Pior Banda. Eu sempre gostei de fazer coisas muito diferentes umas das outras, quer em termos de desenho, quer em termos de narrativa. E é significativo que, pela primeira vez, tenha parado num sítio. Com A Pior Banda do Mundo criou-se um universo no qual eu me sinto perfeitamente à vontade e onde consigo contar histórias que dantes não conseguia contar. E as histórias, neste universo, surgem-me com muita facilidade. Às vezes estou a executar uma história e acabo por ter ideias para mais uma ou duas. Não sei se este é um trabalho de maturidade ou não, mas a verdade é que fiquei, pela primeira vez, sensibilizado com aquilo que criei e, para já, não excluindo fazer outras coisas, não penso abandonar este projecto da Pior Banda do Mundo tão cedo.

Então podemos contar com mais volumes para além dos seis anunciados?
Sim, estão terminados seis volumes mas eu tenho sinopses para mais. A minha preocupação fundamental é ter a certeza de que não descobri um filão fácil, estando a explorá-lo só porque é fácil. Por isso exerço uma vigilância constante para garantir que o nível de qualidade se mantém, quer nos ambientes, quer nas histórias.

Isso acaba por ter a ver com a própria noção de variação musical tão presente no jazz… É como se estivéssemos perante inúmeras variações de uma primeira frase musical que, às tantas, já não são a mesma música.
Sim, é uma comparação feliz. De facto é um trabalho interessante ouvir várias versões da mesma música porque chegamos sempre a sítios diferentes e isso é um pouco o que acontece na cidade da Pior Banda do Mundo. Para além disso, é muito fácil criar muitas histórias naquele universo. Tirando o limite que impus a mim próprio, de não ocupar mais de duas páginas com cada história, tenho liberdade total para criar histórias onde posso fazer quase tudo, inclusive introduzir personagens que podem não voltar a aparecer, enfim…a liberdade é muito grande.

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