26.2.08

PLANETA TANGERINA

Não gosto muito de 'repescar' textos que publiquei noutros espaços para colocar aqui no blog, mas como o tempo anda escasso para escrever mais e como a Planeta Tangerina, recentemente premiada, me parece um projecto demasiado bom para que se fale tão pouco nele, deixo o texto que escrevi para o catálogo do último FIBDA sobre esta editora.
Já agora, se alguma alma caridosa e conhecedora dos truques informáticos deste mundo quiser explicar como se partem os textos no blogger de modo a deixar uma parte visível e a outra em link, a gerência ficaria profundamente agradecida.




O SIMPLES APARENTE – o Planeta Tangerina


Algumas das características estruturantes dos livros Pê de Pai, de Isabel Martins e Bernardo Carvalho, e Uma Mesa É Uma Mesa. Será?, de Isabel Martins e Madalena Matoso, são partilhadas com todas as outras edições da responsabilidade da Planeta Tangerina. Comecemos, por isso, pelo geral.
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, muito recomendável, lê-se a seguinte definição geral de ‘livro’: “Colecção de folhas de papel, impressas ou não, cortadas, dobradas e reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura, etc, formando um volume que se recobre com capa resistente.” Dentro desta definição, cabe muita coisa, da lista telefónica ao livro mais luxuoso. O resultado final e específico de cada livro depende mais do trabalho de autores, editores, designers e gráficos do que dos elementos que compõem a sua definição. E os livros da Planeta Tangerina não fogem à regra da definição geral (as folhas impressas, cosidas, com capa, etc), mas a sua especificidade revela objectos que parecem simples, mas que ocultam, das folhas de guarda ao conteúdo, da capa à contra-capa, uma estrutura pensada de acordo com alguns conceitos estéticos e a sua ligação profunda com a função da leitura e o modo como os conteúdos chegam ao seu leitor. E se a primeira impressão é a da simplicidade, aparente, como já se disse, isso só confirma os bons resultados de um projecto gráfico, estético e de conteúdos trabalhado como um todo e que deixa à vista apenas o que tem de ser visto.
Pê de Pai, de Isabel Martins e Bernardo Carvalho, recebeu uma menção especial do júri do Prémio Nacional de Ilustração 2006 (assim como o livro Uma Mesa É Uma Mesa, Será?). A relação entre pai e filho/a é o ponto de partida para um conjunto de imagens com texto onde, uma vez mais, a simplicidade confere o tom geral: em cada página, mostra-se um de entre muitos momentos possíveis em que os protagonistas são pai e filho/a, ambas personagens fixadas como manchas de cor sem grandes pormenores, acompanhadas de uma legenda que descreve em apenas duas palavras o momento que se ilustra. Qualquer tentativa de apartar legenda e imagem faria desabar o conjunto, pois é da junção de ambas e do recurso às palavras como mais um elemento, imprescindível, do desenho que vivem estas páginas: o ‘Pai-Tractor’, o ‘Pai-Seta’ ou o ‘Pai-Pequenino’ apenas se concretizam nas manchas de cor que definem cada um destes ‘estados’ encarnados pela figura paterna, e o inverso verifica-se do mesmo modo. Não é, por isso, de simplicidade que falamos, mas de uma resolução tão acabada da representação dos diversos momentos de entre os possíveis numa relação pai-filho/a que qualquer elemento a mais seria dispensável (mais texto poderia explicar que o ‘Pai-Seta’ está algo zangado e a fazer cumprir uma ordem, mas isso destruiria toda a estrutura do livro) e qualquer elemento a menos seria uma impossibilidade.
Em Uma Mesa É Uma Mesa. Será? as ilustrações de Madalena Matoso estruturam-se no contraste entre o branco do fundo e as cores do desenho, as formas simples que surgem de linhas rectas ou curvas e os pormenores conseguidos a partir de colagens/ montagens de padrões, objectos e texturas várias. Já não estamos perante o discurso minimal e quase da ordem do simbólico que constrói Pê de Pai, mas antes perante um texto que obriga à representação de uma pluralidade de elementos: a menina que se questiona se uma mesa será apenas e só uma mesa descobrirá, ao longo do livro, as várias formas, importâncias e afectos que uma mesa pode assumir e desencadear de acordo com o olhar que a observa e com o ser que com ela se relaciona. Agora, é o mundo que se descobre a cada passo no olhar de uma criança curiosa e disponível para receber as várias visões que esse mundo lhe permite.
Muitos livros destinados ao público infantil falham o cumprimento das suas intenções (e as aspirações dos seus leitores) pelo facto de não conseguirem transpor a barreira do mundo visto, sentido e imaginado pelos olhos de uma criança, preferindo recorrer às percepções, dúvidas e sonhos que os adultos crêem ser os infantis. Os dois livros da Planeta Tangerina que se apresentam neste FIBDA, pelo contrário, são um bom exemplo dos resultados que se obtêm quando os preconceitos sobre o imaginário infantil são abandonados e a simplicidade, ainda que apenas aparente, surge como modo de linguagem mais fértil para a encenação e a construção desse mundo por descobrir.

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