ESPAÇO CRÍTICO - A VIDA NUMA COLHER - BETERRABA, DE MIGUEL ROCHA
[Este texto está também disponível no Canal de Livros, nesta secção.]
O mais recente livro de Miguel Rocha constitui um marco incontornável no panorama actual da bd portuguesa. Realizado no âmbito de uma bolsa do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, A Vida Numa Colher – Beterraba confirma as vantagens de incluir a banda desenhada no rol de áreas literárias apoiadas por este programa estatal. Mas para lá de apoios e responsabilidades dos organismos oficiais, falemos do que verdadeiramente interessa.
Simultâneo à leitura, o primeiro impacto é o da cor. É verdade que não é a primeira vez que o autor apresenta um trabalho onde cor e textura se dão a ler de modo original, mesmo revolucionário, embora a palavra já não se use… Veja-se As Pombinhas do Senhor Leitão, publicado em 1999 e revelador de uma atenção e de uma sensibilidade desarmantes. Mas a experiência visual que constitui este A Vida Numa Colher – Beterraba consegue quebrar anteriores limites estabelecidos, inclusive pelo próprio autor.
A plasticidade que Miguel Rocha imprime a cada vinheta desloca a leitura para terrenos muito próximos do cinema, não pelo realismo da imagem, mas pela capacidade que esta assume na transmissão (forte) de sensações, todas elas decorrentes da visão. As cores com que Rocha trabalha são as de um Alentejo sentido a cada ângulo de luz e recriado a partir de um olhar atento e capaz de transformar cada imagem apreendida num quadro único.
De tudo isto é impossível separar o texto, o argumento, já que cor e movimento são, também, texto e argumento nesta história. Mas importa falar da narrativa que atravessa o livro e que cruza com mestria sonhos perdidos, ilusões e verbos incapazes de comunicar. Da mesa de um café, o neto de “Beterraba” vai recordando a história do seu avô, tal como lhe foi contada pelos velhos da terra onde morara e onde deixara os seus sonhos e desesperos marcados na memória de todos. Assim nos chega a teimosia de Olegário, as suas visões grandiosas e o modo como as faz cumprir, contra tudo e todos, mesmo contra si próprio. E assim nos chega também, elemento essencial neste livro, a dor de quem procura incessantemente um mundo só seu, escrita e reescrita entre texto e imagens, revelando uma personagem que pode ser lida como se lia o deserto nos velhos textos dos eremitas: tempo, areia e imensidão sem nenhuma hipótese de comunicar para lá do próprio corpo, dentro da teia dos próprios pensamentos – “Um pé apertado, o outro solto, o mundo não lhe servia. Ia fazer um para si, à sua medida” (pg.12).
Edições Polvo, Lisboa, 2003
3.12.03
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