19.11.04

ESPAÇO CRÍTICO
Coloquei recentemente on-line, no Canal de Livros, um texto sobre as últimas reedições de Manara que a Meribérica lançou no mercado. O Canal de Livros está com alguns problemas técnicos, que impedem a visualização dos caracteres sem "intrusos gráficos" e que, espero, estarão resolvidos nos próximos dias. Ainda assim, aqui fica o texto sem os tais "intrusos".



REEDIÇÕES DE MANARA

Foi em 1969 que Milo Manara iniciou o seu percurso pela nona arte, com a publicação dos vinte e dois episódios de Genius onde o traço e o argumento mostravam já as direcções do seu trabalho futuro. A partir da década de setenta, Manara afirmou-se no panorama da banda desenhada europeia, ocupando um espaço pouco definido e situado algures entre a banda desenhada das páginas da imprensa e o erotismo escondido nos quiosques.
A Meribérica-Liber reeditou recentemente um conjunto de títulos do autor, nomeadamente A Metamorfose de Lucius e Gulliveriana, que destacaremos, mas também O Clic, O Clic 2, Câmara Indiscreta e Encontro Fatal.
Baseada num texto de Apuleio (séc. II) e originalmente editada em 1999, A Metamorfose de Lucius recria a história do Asno de Ouro ao modo inconfundível de Manara. Lucius, descendente de Plutarco, dirige-se à região de Tessália para entregar uma missiva e acaba por render-se aos mistérios e às múltiplas atracções do lugar. Transformado em burro pelo efeito de uma poção mágica, Lucius tenta sobreviver a todo o custo às várias situações que vai enfrentar, procurando recuperar a sua forma humana e abandonar Tessália são e salvo, tarefa que será dificultada pelos múltiplos assédios e por inesperados contratempos. E é aqui que se cruzam, de modo muito bem conseguido, as descrições de Apuleio com os devaneios eróticos de Manara.
O traço de Manara socorre-se, aqui, de todo o manancial de sensualidade e de encenação que constitui o património artístico do autor e cria uma narrativa visual apoiada numa luminosidade que remete para um passado longínquo, o tempo que só nos chegou pelos registos da memória, necessariamente esbatidos e lutando para sobreviver ao pó. Mas se este é o ponto de vista assumido, o resultado é uma releitura muito interessante de um dos clássicos literários da Antiguidade, elaborada à luz de uma actualidade que passa pela inserção deste trabalho na obra restante de Manara e nas múltiplas adaptações de episódios ou textos históricos para a linguagem da banda desenhada. É neste contexto que A Metamorfose de Lucius se assume como um álbum fundamental no percurso, felizmente longo e ainda produtivo, de Milo Manara.
Gulliveriana, inspirada no romance de Jonathan Swift, está mais longe da releitura histórica proposta com A Metamorfose de Lucius e bastante mais perto de uma fantasia erótica, partindo de uma sucessão de visões e situações sonhadas a partir do imaginário de As Viagens de Gulliver. A personagem central, feminina como não podia deixar de ser, e obedecendo às características habituais das mulheres de Manara (as curvas, o ar sensual, a predisposição para os jogos eróticos), perde-se junto à costa e descobre, num barco abandonado e quase fantasmagórico, um exemplar de As Viagens de Gulliver, que lhe fará companhia até que alguém a venha salvar. A partir daqui, sucedem-se as fantasias, entre liliputianos megalómanos, gigantes perversos e bacantes voadoras, haverá espaço e tempo para todos os delírios antes do regresso desta Gulliveriana ao seu ponto de partida.
Ainda que o único ponto comum entre os dois livros seja a adaptação de obras literárias consagradas, não havendo, por isso, muito mais para comparar, o resultado final de A Gulliveriana não é tão inspirado como o de A Metamorfose de Lucius, nomeadamente em termos gráficos. Ainda assim, saúda-se a reedição dos dois álbuns, já esgotados no mercado português e agora disponíveis, esperando que os mais recentes leitores de bd descubram, por entre as prateleiras das livrarias, um dos autores mais consagrados e também mais polémicos da nona arte.

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