8.11.03

ESPAÇO CRÍTICO – PERSÉPOLIS, DE MARJANE SATRAPI
As Edições Polvo lançaram recentemente o primeiro de quatro tomos da série Persépolis, de Marjane Satrapi, a primeira autora de bd em terras iranianas.
Nascida em 1969, descendente do último imperador da dinastia Qadjar e do antigo primeiro-ministro da Pérsia/Irão, Marjane Satrapi viveu no Irão até aos 14 anos, altura em que os pais decidiram enviá-la para a Europa, poupando-a às novas leis e ao autoritarismo da facção fundamentalista que ganhara o poder após a revolução.
Persépolis é, assumidamente, um livro autobiográfico. A narrativa debruça-se sobre o período recente da História do Irão, que abarca a revolta contra o Xá, a sua deposição e a posterior revolução islâmica, sendo o ponto de vista do narrador o primeiro elemento a destacar-se nesta obra. É que uma das particularidades que faz de Persépolis um livro muito especial é o facto de a história que nele se conta ser narrada por Marjane, uma menina de dez anos que atravessa todas as agitações e perigos inerentes a um momento conturbado, mantendo a visão inevitavelmente parcial e fantasiosa de quem ainda não conhece muitos dos motivos que fazem girar a eterna engrenagem da História.
O primeiro volume de Persépolis acompanha as descobertas de Marjane no que diz respeito à vida, à sociedade e ao ‘mundo dos adultos’, ao mesmo tempo que relata os acontecimentos políticos que vão fazendo do Irão um país em constante turbulência, até à revolução. E só uma criança de dez anos, disposta a conhecer as particularidades do mundo mas ainda presa ao imaginário da sua infância, seria capaz de apresentar uma visão dos acontecimentos que se descrevem em Persépolis com a beleza ingénua e vincadamente fantasista com que a pequena Marjane nos vai contando a sua história. Esta ingenuidade é particularmente visível, mesmo comovente, quando Marjane ouve falar das torturas horríveis a que um amigo dos seus pais (como tantos outros) foi sujeito na prisão e a sua primeira reacção, sem poder perceber o alcance do que ouviu, é de ‘pena’, por não ter nenhum herói, nenhum torturado na família.
O traço de Marjane Satrapi, apenas negro sobre branco, é simples e sem marcas de elaboração no que ao pormenor diz respeito, o que não é, de modo algum, negativo. Pelo contrário, a simplicidade do traço garante ao conjunto gráfico-literário a total fusão entre as características da narradora e a história que se conta em palavras e imagens. E o resultado é um livro extraordinário, onde a força da narrativa e o traço singelo se fundem na construção de uma série de bd que promete tornar-se referência imprescindível.
Parece que o próximo volume sai no primeiro trimestre de 2004. Estejam, por isso, atentos.


Prancha da edição em castelhano.

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